Os rituais dentro do muaythai e sua importância na construção do esporte

A influência do budismo dentro do esporte e seus rituais

Publicado em 30/03/2022

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A ideia de tradição vem do latim “Traditio”, ou seja, “passar adiante”. A intenção da tradição é passar adiante costumes, crenças, comportamentos para que a cultura seja preservada. É um processo lento, que pode levar gerações para que sejam estabelecidas. Mas a tradição é o que define a cultura de um povo.

Dentro das artes marciais isso não é diferente. Todos possuem uma roupa própria a vestir durante os treinos, posturas para iniciar e encerrar o treino, podemos ver dojos (academias) decorados com bandeiras, fotos de seus fundadores, tudo para que o aluno entenda em qual ambiente ele está. A tradição molda a cultura.

Sabemos que a arte marcial japonesa, chamada de Ko-Budô foi fortemente influenciada pela crença zen-budista e confucionista.  Durante o período Tokugawa que durou 250 anos, o Japão estava em paz, sem conflitos armados, sendo assim a figura do samurai como guerreiro foi substituída pela figura do samurai como classe social, que estudava caligrafia, pintura, poesia e meditação.

Já debatemos aqui sobre a concepção errada a respeito do Bushido, mas a tradição do comportamento e filosofia das antigas escolas marciais japonesas reverberam até os dias de hoje em academias pelo mundo todo. Isso é tradição. Podemos argumentar que não somos samurais/guerreiros/soldados/ninjas/jedi, e estaremos certos nessa argumentação. De fato, não somos, e ainda bem, apesar da visão romântica, os períodos de guerra eram quase sempre morte certa.

Mas é fundamental entender o contexto daquilo que você deseja fazer parte. Há pelo menos 190 tipos de arte marcial no mundo, algumas bem famosas como Karate, Jiu-Jitsu, Judô e Tae Kwon Do e outras de acesso bem restrito como Tahtib, arte marcial criada no Egito. Todas possuem características próprias, uma cultura envolta, uma tradição.

A única exceção se dá para sistemas de combate desenvolvidos por entidade militares modernas, e o motivo é simples. Eles não são criados dentro de uma tradição. São apenas técnicas retiradas de outras artes e sintetizadas em um único sistema, sem filosofia, sem apego a relação cultural, apenas técnicas, nem nomes próprios possuem.

AS TRADIÇÕES LIGADAS AO MUAYTHAI

Muito se fala sobre as tradições ligadas ao muaythai, mas pouco se explica a respeito. Afinal quais são as tradições e porque elas estão ligadas ao muaythai? Vamos explicar de uma vez por todas.

O muaythai se desenvolveu dentro de um ambiente budista, desde o século XIII durante o período Sukhothai que se tornou um império budista, se desvencilhando dos domínios do império Khmer (Camboja). A origem do povo Thai se dá a partir da origem do Reino de Sukhothai com a criação do dialeto “proto-thai”, a crença budista como oficial do reino e a união dos pequenos reinos em volta.

O auge da cultura Thai se dá durante o Período de Ayutthaya, expansão territorial, comércio com europeus (portugueses, holandeses, ingleses), desenvolvimento do Chupasart (manual para combate armado) e o Pahuyuth (sistema de combate armado/desarmado).  O reino de Ayutthaya entrou em guerra com o reino da Birmânia, uma guerra que se iniciou em 1547 e durou até 1855.

Após essa fase de guerras o Reino de Sião (Tailândia) voltou a prosperar, agora em uma nova capital; Bangkok. Com o País se modernizando e estreitando relações com a Inglaterra, novas leis foram criadas, investimentos e claro, crescimento do muay em todo país. Já explicamos aqui que o ”muay” era uma luta praticada em todo o reino de Sião, porém cada província tinha um estilo próprio de luta. Portanto o estilo recebia o nome da sua região, sendo assim tinhamos; Muay Chaiya, Muay Korat, Muay Lopburi, Muay Tha Sao etc.

Luta de Muay – Reino de Sião 1930

Devido a quase 3 séculos de guerra, sincretismo de crenças (budismo – hinduísmo) e aperfeiçoamento militar/marcial, o muay absorveu boa parte da cultura e da tradição thai, afinal ele foi criado dentro deste ambiente. Sendo assim o atual muaythai ao contrário de seus pares (karate – Jiu-Jitsu – Judô – Tae Kwon Do). Não estou dizendo que eles não possuem tradição, porém sua influência é muito menor, e a razão é simples, com a intenção de tornar a prática um “esporte”, várias características foram retiradas.

Explicando um pouco melhor, o Karate teve sua origem na ilha de Okinawa que não fazia parte do império japonês, mas sim tinha laços estreitos com a China. Portanto sua arte marcial chamada de “okinawa-te” ou apenas “Te” não era de interesse do Japão. Isso mudou somente quando Ginchin Funakoshi viajou ao Japão para mostrar sua arte e convencido por Jigoro Kano (fundador do Judô) ficou no Japão, o “okinawa-te” se tornou “karate” e Funakoshi se tornou o fundador do estilo “Shotokan Karate”. Esse processo de “modernização” aconteceu com diversas artes marciais que aboliram 90% dos conceitos tradicionais para se tornar algo comercial.

O BUDISMO O HINDUÍSMO E O MUAYTHAI

O Budismo não é uma religião nos moldes tradicionais, e sim uma doutrina desenvolvida a 2.500 anos. Entender esse princípio é fundamental para derrubar alguns preconceitos. Sempre me deparo com a seguinte frase “Se você diz tradição no Muaythai, então você também tem que ser Budista”. Confesso que isso me dá sono, argumentos rasos sempre são chatos.

É como dizer “Você joga Capoeira? Então você tem que ser Umbandista, ou do Candomblé. Afinal a origem da Capoeira está atrelado aos escravos que estavam intimamente ligados ao Candomblé e posteriormente a Umbanda. Você não está no direito de impor nada a ninguém, mas sim entender do que estamos falando.

Historicamente falando, não há consenso sob a definição da palavra “Religião”. Porém vou utilizar a de Agostinho de Hipona (século IV):

  • Religião = Religere = Religar o Homem ao Divino.

O objetivo do Budismo, é o praticante se libertar do sofrimento a partir de práticas estabelecidas e conceitos como o Darma e o Karma. Uma doutrina estabelecida a partir dos ensinamentos de Sidarta Gautama no século IV Antes de Cristo.

A Tailândia hoje é 94,6% Budista, 4,6% se declaram Muçulmanos e 0,8% Cristãos*, sendo assim é obvio que elementos da sua cultura serão absorvidos. O Muaythai foi desenvolvido em cima dessa cultura, porém devemos deixar muito claro algumas coisas.

PAKAMA

Você com certeza já se deparou nas lutas de muaythai, algum lutador utilizando um tecido enrolado na cintura. De cores variadas, e nós e laços feitos de várias formas, tal utensílio tem chamado a atenção dos fãs de muaythai.

Este tecido enrolado na cintura do lutador chama-se “Pakama/Phaakhawmaa”. Sua origem está na província de Issan na Tailândia. Seu uso simboliza sua família e sua origem. E a criação de um Pakama é essencialmente manual e pode levar até 3 meses para ficar pronto.

Porém seu uso não está ligado apenas ao muaythai, mas sim há cerimônias budistas, casamentos e ocasiões especiais. Sua função é tão variável que pode ser usada inclusive como travesseiro ou toalha. Porém sua cultura vem sofrendo declínio já que os jovens atuais já não levam a tradição a frente.

Hoje infelizmente não é comum, mas homens mais velhos e em ocasiões especiais, o pakama é utilizado na região de Issan. E lutadores de muaythai o utiliza para celebrar e honrar seus laços com a família e sua origem.

WAI KRU RAM MUAY 

Lutadores realizando o Wai Kru Ram Muay no ringue

Todo lutador tem por obrigação conhecer a prática do wai kru ram muay e seu sentido aplicado ao ringue. Não se usa a palavra Arte em vão, todo o conjunto de técnicas envolve filosofia e crenças milenares.

Mas antes de explicar a prática em si, vamos as definições:

  • Wai = Ação de unir as mãos como em prece para mostrar respeito/agradecer
    Kru = Podemos traduzir como professor/treinador
    Ram = Antigo estilo tradicional de dança tailandesa
    Muay = Luta/lutar

No Ocidente estamos acostumados com o sistema de academia padrão, você entra, paga e começa a treinar, mas no Oriente durante muito tempo não era tão simples. Você era apresentado ao Professor e prestava respeito a ele. Era comum  oferecer flores, comida, velas perfumadas ou algo que lhe fosse de valor. Após essa aceitação o aluno começava seu treinamento básico na Arte focado na disciplina, respeito e técnica. Dessa tradição temos o que hoje é conhecido por Ram Muay Wai Kru.

Ela reflete diretamente a origem e região do seu campo de muaythai, as crenças do local e do seu professor, com a intenção de mostrar as raízes que construíram suas crenças.

O lutador percorre o ringue com sua mão direita tocando as cordas como forma de selar o ringue. Nos 4 cantos faz uma breve parada e realiza uma prece. Se dirige ao centro do ringue se ajoelha e se curva por 3 vezes em sinal de respeito. Dentro da crença budista esse 3 sinais são para Buddha, Dhamma (ensinamentos) e Sangha (comunidade). Porém dentro do muaythai esses 3 sinais também são aceitos para o professor, a família e ao seu País.

Assim o lutador executa o Ram Muay, que possui variações das mais simples as mais complexas, o Ram Muay é pessoal, desenvolvido pelo lutador, campo de treino ou treinador. Ele demonstra equilíbrio, calma, técnica e de forma simbólica pede proteção na “batalha” que irá começar.

Todo o rito é seguido de música (Sarama), e todo lutador usa seu Mongkon na cabeça para simbolizar seu campo, seu professor e seu local de origem. Antigamente a posição do mongkon indicava de qual região do País o lutador era; Norte, Central ou Sul.

É de grande importância que todo praticante de Muaythai busque conhecer e aprender o Ram Muay Wai Kru, não apenas como forma de arte e tradição mas servirá muito bem para acalmar e fortalecer a mente antes da luta.

A prática do Wai Kru Ram Muay não está atrelada apenas ao praticante de budismo, hoje em dia é comum lutadores de outras crenças utilizarem esse momento para expressar sua fé. Alguns utilizam um crucifixo no mongkon, outros possuem um colar de contas (umbanda/candomblé) no pescoço junto ao Phuang Malai entre outras demonstrações. O principio da prática é mostrar respeito ao seu treinador, ao seu campo e expressar sua crença dentro do ringue de forma respeitosa e pedir a benção e proteção necessária para lutar e votar para casa em segurança.

SENTIDO HORÁRIO – SENTIDO ANTI HORÁRIO

Existe uma discussão a respeito do sentido que o lutador irá caminhar dentro do ringue, horário ou anti-horário? Bom, devemos conhecer o conceito chamado Pradaksina. Conceito anterior ao budismo, já era citado nos Vedas, antigos textos da cultura Indiana. A prática consiste em andar em volta do mestre ou de um abjeto sagrado no sentido horário.

Ananda discípulo de Buda, circulava seu mestre 3 vezes, se ajoelha, descobre o seu ombro direito e o saúda com uma reverência. Mas por que sentido horário? Porque na Índia desde tempos imemoriais até hoje, a mão direita representa o puro, é a mão com que se come, oferece incenso, já a mão esquerda era considerada impura, pois sua função é/era se limpar.

Algumas outras correntes de pensamento filosófico-místico correlacionam a mão direita com o caminho da alma (espiritual) e a mão esquerda com o caminho mundano (terreno).

Porém há treinadores tailandeses que optam pelo sentido anti-horário, mas porque? A suástica budista, chamado no Japão de Manji (万字) é considerado um dos símbolos religiosos mais antigos que existem, está presente em culturas como Hindu, Celta, Grega, Judaica, Nórdica, Budismo, Jainismo, Sikhismo e Taoísmo. O nome “suástica” é derivado da palavra sânscrito (língua ancestral da Índia) “Savstika“, que basicamente significa “bem-estar”.

Templo Budista Japonês

Os 4 braços ligados a estes eixos para representar o movimento, a Força girando criado pela interação dos elementos, Eles também apontam 4 direções, que representam as quatro vedas, as quatro escrituras sagradas mais antigas da história na qual ensinam a filosofia da vida ensinada por Deus.

O símbolo Manji (suástica), quando virado para a esquerda Omote (frente), representa amor e misericórdia. quando virado para a direita Ura (parte traseira) representa força e inteligência. Talvez a intenção de andar no sentido anti-horário faça justamente referência a esse conceito.

Suástica Budista

A suástica do partido alemão adotado em 1920 se tornando o símbolo do nazismo, nada tem a ver com as crenças descritas aqui, o símbolo nazista possui uma inclinação de 45º e um circulo em volta do símbolo.  Seus motivos e criação tiveram um outro propósito.

KRUANG PUANG MALAI PRAJIED

Você sempre ouve falar em kruang, prajied e graduação, mas não faz a menor ideia do que isso quer dizer? Vamos tentar explicar então. Muitas pessoas ao conhecerem melhor a cultura Tailandesa acabam por descobrir um dos maiores hobbies do homem Tailandês; o Phrakruang.

Amuleto Budista

Você pode ter visto em alguma foto, seja dentro de táxis tailandeses, com lutadores, nos templos, ou até mesmo com quem não sabe nada sobre o Phrakruang, mas por acharem bonito, acabam tendo o seu próprio. A Palavra Phrakruang significa basicamente em livre tradução ‘amuleto de boa sorte’.

E como o nome já diz, tem função supersticiosa, e profunda ligação com o budismo por serem amuletos de proteção e boa sorte. Existe uma infinidade bem variada de Phrakruangs, e alguns chegam a possuir centenas de anos ou até milhares de anos.

Eles são feitos à mão pelos monges Tailandeses, nos templos, e o material usado na sua fabricação é super variado. Alguns são de ouro, outros de prata, aço, barro, tecidos, resto de comida, pele de animais etc.

Como os monges vivem de doações e benção, é algo que não pode ser comprado. Os Phrakruangs são postos para serem alugados, então você pode pegar essa benção e presentear alguém querido, e ao mesmo tempo, ajudar os monges que precisam de ajudas para viver.

Os Phrakruangs movimentam um mercado milionário todos os anos na Tailândia, e alguns chegam a ter preços altíssimos, porém, esses provavelmente estão em posse de colecionadores e pessoas com um alto nível de riqueza.

Sabemos que dentro do muaythai profissional não há graduação, mas é necessário um sistema para organizar treinos comerciais. Grande parte dos alunos não buscam se tornarem lutadores, mas sim apenas procuram uma atividade física. Isso claro não é desculpa para transformar o muaythai em uma aula de axé-fitness como é visto por ai.

Lutador com Phuang Malai e Kruangs

Muaythai é arte marcial, esporte, e há história, cultura e tradição dentro do esporte. Não respeitar isso é uma ofensa. Porém há graduação em algumas entidades séria como a IFMA (Federação Internacional de Muaythai Amador) entre outras.

Você irá encontrar dezenas de entidades no Brasil que realizam avaliações de alunos e utilizam um sistema de cores para graduar os mesmos. A validade disso sempre será interna já que  no circuito profissional isso não é levado em conta. E sim há muito estelionato em cima disso, valores abusivos, selos não oficiais e até mesmo entidades sem representatividade alguma perante o governo Tailandês.

Mas afinal, o que seria então o Prajied e o Kruang?

Simples, o prajied (pracilat) é o laço utilizado no braço do lutador. Para o lutador um pedaço do vestido da mãe, uma corda dada pelo melhor amigo ou treinador, o material não importa, mas sim o ato de amarrar o amuleto no braço e as preces e positividades ali emanadas.

Historias contam que em algumas ocasiões o material ou formato do nó descreve o estilo do lutador, por exemplo; palha ou sisal (MuayFimeu), couro (MuayMahd ou Darn), tecido com cores vibrantes (muay khao). O Kruang nada mais é que um amuleto, que pode ser um pequeno texto budista inserido no Prajied como forma de proteção. É muito comum em campos de muaythai na Tailândia treinadores utilizarem amuletos no pescoço.

MONGKONG

Mongkhon, Mongkon ou Mongkol é o nome da coroa utilizada por lutadores antes de entrar no ringue. Sua história está ligada com o império Khmer, atual Camboja, que influenciou grande parte do sudeste asiático durante os períodos entre o século IX ao XV. Talvez a primeira referência semelhante ao atual mongkon está ligada ao Bokator, arte marcial do império Khmer.

Demonstração de Bokator

Porém recentemente o Bokator entrou em uma grande polêmica, o Camboja pediu a UNESCO para que sua arte marcial seja reconhecida como patrimônio não material da humanidade, mas os registros históricos a respeito dela são muito escassos, ao ponto de não se ter certeza sobre suas técnicas e desenvolvimento. Você pode ler melhor na nossa matéria: Qual a relação do Muaythai Lethwei e Bokator?

Mas o mongkon entra como objeto de liturgia dentro da cultura tailandesa, utilizado para trazer bênçãos e proteção. Sua confecção era 100% artesanal e cada campo de muaythai possuía apenas um.  Até o final dos anos 1980, o mongkon além de objeto sagrado indicava em sua “cauda” a origem do lutador, ou seja, caso a cauda estivesse pra baixo, o lutador era do sul do país, cauda reta? Centro do país, e cauda para cima, norte do país. Atualmente essa prática não é mais utilizada.

O mongkon representa seu campo de muaythai, sua tradição, todos os lutadores que passaram por ela, seu treinador, o fundador do campo, a família e suas crenças. Considerado sagrado, é sempre colocado acima da cabeça de todos na academia, apenas o treinador pode segurar ele, e nunca, em nenhum momento ele deve ser deixado “largado” em cadeiras, bancos, muito menos no chão. A não ser que você entenda que sua academia e treinador mereçam a sujeira do chão.

 

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