O treinador estava cortando cocos com sua machadinha no lado de fora da casa de blocos e cimento de sua Tia idosa, quando nos aproximamos. Ele me cumprimentou de forma muito educada, e recebeu minha amiga Frances Watthanaya com um grande sorriso. “Esse é o Dam”, disse Frances a mim, “ele é o melhor treinador com quem eu já treinei”.
“kru” Dam
Dam nos convidou a sentar na grama ao lado da entrada de cimento e nos ofereceu um pote com água de coco. A Tia de dele apareceu da sombra de sua casa de apenas um quarto e agachou-se próxima a nós, perguntou-nos sobre o que queríamos para o jantar e avisou que tinha peixe.
Sua postura era sempre muito curvada, culpa de uma vida toda trabalhando em campos de arroz, hoje impossibilitada de ficar ereta sem sentir dores na coluna, ela apenas anda curvada, quase agachada próxima ao chão.
Fances me conta que Dam fica às vezes na casa de sua Tia, ele fica “pulando” de casa em casa de parentes e amigos na região. Ele é basicamente um sem-teto. Ele vivia em Bangkok capital tailandesa, até que liguei para ele meses atrás dizendo que queria ele como treinador em tempo integral do nosso campo a Giatbundit Gym, localizada em Issan, um vilarejo conhecido pelos campos de muaythai e seus campeões.
Frances-Watthanaya
Dam trabalhava na época como moto-taxi e às vezes ajudava amigos de outras academias treinando as crianças. Quando Frances lhe ofereceu um trabalho em sua terra natal (Issan), Dam arrumou suas coisas e foi embora da capital.
Frances começou a treinar com Dam na Bor. Breechaa Gym em Bangkok cerca de 10 anos atrás, “O melhor treinador que já conheci” Frances repetia para mim, e completou “Ele é bem falante, ele irá pedir uma garrafa de Lao Khao, e lhe contará histórias, você queira saber ou não”.
Mesmo sendo a primeira vez que conhecia Dam, o nome dele não me era estranho, lembro que entrevistei o grande lutador Namkabuan e ele mencionou alguém com o nome “Dam” dizendo ser o número um como treinador. Frances confirma, Dam era muito famoso por ser um grande treinador, e alcoólatra.
A conversa foi interrompida pela Tia de Dam, para pegarmos caranguejos e mariscos para o jantar, mas eu queria saber mais a respeito de Dam, ele era alto, bem diferente do restante do vilarejo, e escondia uma tristeza bem grande, afinal como um dos grandes treinadores de Muaythai se torna um sem-teto em seu vilarejo perdido entre os arrozais?
Podemos dizer que Dam é um produto do seu ambiente, diziam que ele era alcoólatra, logo lhe pagavam em bebida. Passou sua infância lutando em Issan, sob o comando de um apostador que se dizia empresário. Sem campo para treinar e sem um treinador, Dam aprendeu Muaythai lutando, assistindo outras crianças lutando, treinando sozinho chutando e socando sacos de arroz com qualquer coisa que pudesse enchê-los, porém os sacos de arroz eram raros, afinal os fazendeiros precisam deles.
Sua transição de lutador para treinador se deu por volta dos 20 anos quando foi para Bangkok e voluntariamente começou a ajudar em algumas academias. “eu queria ajudar” Dam me diz, e segue “Com o tempo percebi que seria bem melhor como treinador do que lutador”.
E continua “é uma vida muito dura, difícil mesmo, eu estava treinando grandes lutadores, mas ganhava apenas o suficiente para viver”. Esse é o grande problema de se ser treinador de vários campos, você nunca será bem pago, não receberá em dia e não receberá salário.
As academias têm seus altos e baixos, e isso afeta seu pagamento, é comum não ser pago, afinal você tem um lugar para dormir e comida, você não se atreve a pedir mais. Dam parecia realmente triste, quase derrotado, quando lhe disse “Ok, quero ouvir uma história sua, me conte sobre seu maior arrependimento”.
Ele solta os cocos, e me pergunta “Meu maior arrependimento?”, Ele ficou calado por um instante respirou fundo, seus olhos encheram de água, fiquei sem reação e perguntei a Frances se estava tudo bem, e Frances pediu que ele continuasse.
“Eu tinha 18 anos” Dam começou, “eu deveria lutar 2 vezes no mesmo dia, pela manhã lutei e vencei no Canal 4 em Khon Kaen, e a noite fomos para a outra luta”.
Meu oponente era um campeão de Issan, me sentia sortudo por lutar contra um campeão de Issan, eu queria muito disputar o título, e já o tinha derrotado tempos atrás, vencendo essa luta com certeza eu receberia a chance de lutar pelo cinturão. Todos pensavam que eu iria vencer, lembro-me das apostas estarem 5 pra 2 a meu favor, havia no corner dele grandes apostadores, afinal ele era um campeão em Issan, e eu apenas um desconhecido, mas os apostadores sabiam que eu já tinha vencido antes, até minha família apostou seu dinheiro em mim.
Nesse momento Dam para de falar, percebo que ele tenta não chorar, sua Tia o chama para ajudar com o jantar, mas Dam a ignora, e me diz: Eu não quero relembrar isso.
Mas Dam continua, eu estava pronto para enfrentar o campeão, quando me disseram que eu deveria entregar a luta. O dono do meu campo disse que precisavam de dinheiro, as outras crianças do campo mal tinham o que comer, eu deveria perder a luta, minha própria academia apostou contra mim, afinal eu era o favorito e perdendo eles ganhariam dinheiro.
Eu tinha apenas 18 anos, e tinha que entregar a luta, quando o dono da academia lhe pede uma coisa, você simplesmente a faz, ele é o dono do campo, do seu contrato, ele é seu dono. Ele dizia que as crianças precisavam de comida, e era verdade, a academia era muito pobre.
Então eu entreguei a luta.
Eu nunca fui pago pela luta, me disseram que meu pagamento serviu a academia, eu não tinha mais o que fazer. Dam parou de falar e enxugou os olhos, Frances estava desconfortável, nunca ninguém tinha chorado em uma entrevista como essa. Mas foi direta ao dizer “alcoólatras vivem no passado, e agora estão presos, sem saída para fazer dinheiro e seguir suas vidas”.
Dam se recompôs e continuou; sabe qual a pior parte de lutar? Não é a dor, ou os cortes ou o treinamento, nada disso, a pior parte é a humilhação quando você perde, quando todos sabem que você poderia ter ganhado, e você sabe que ganharia. Quando você desce do ringue e todos estão te xingando, vaiando, lhe chamando de fraco, inútil e etc.
Naquela noite eu só podia ficar quieto e sair de lá, eu não poderia dizer que não foi minha culpa, minha família estava lá e eu não tinha coragem de olhar para eles, todo o dinheiro que minha família e amigos apostaram, eles perderam. Eu nunca poderia lhes pagar de volta.
Mas é assim que você entrega uma luta, você tem que ter certeza que ninguém irá perceber, todos devem achar que é real, mantive isso em segredo por anos, eu tinha muita vergonha de tudo. Isso aconteceu há 30 anos, mas penso sobre isso quase todo dia, isso abalou muito minha cabeça e coração.
Olhe pra mim agora, não tenho nada para mostrar, fui um bom lutador, treinei grandes lutadores, ajudei-os a se tornarem campeões. Eu seria hoje um homem diferente se não tivesse entregado aquela luta.
Ser um treinador é muito duro, ser um lutador é muito duro. As pessoas usam você e depois te jogam no canto, é um mundo muito duro. Hoje tenho um filho, que nem completou um ano de vida ainda, e não quero que ele passe pelas coisas que passei, nunca deixarei ser um lutador de Muaythai.
Frances quebrou o silêncio dentro do carro durante nossa volta e disse: O filho de Dam será um lutador, queira ele ou não, Dam não escapou desse destino, o garoto também não irá.
Notas da tradução:
Lindsey e Frances são jornalistas, o texto foi adaptado a partir dos relatos de ambas.
Matéria original: Fightland / Por Lindsey Newhall
Tradução e adaptação: Tiago Simão.